Lola, sentada a frente do Mediterrâneo sentia suas lembranças vagas como fantasmas em uma noite escura. O trompete de “Summertime” em relances, trazia a realidade. A fragilidade e decadência do momento se manifestavam na dificuldade de levar aos lábios a piteira antiga que havia recebido de presente de Bigitta.
Era um embrulho lindo com laço brilhante vermelho.Os olhos da amiga flamejavam de expectativa, até que a piteira foi levada a boca em gestos lentos de extremo encantamento pelo presente proibido. Fumaram o primeiro cigarro dourado nas escadarias prepotentes da escola de dança quatrocentona e se sentiram mulheres verdadeiras quando no momento de se encontrar os gestos e caras perfeitas para usar o presente, notaram olhares desinibidos do cobiçado professor de literatura. Lola não ruborizou, não desviou os olhos, não se sentiu diminuída por ser desejada por um olhar tão escandaloso, não. Foi naquele segundo invadida pela força e poder que fez, por uma vida inteira, se sentir uma mulher completa.
Respirou e a leve brisa trouxe a lembrança o cheiro dos cabelos de Brigitta, juntas corriam livres entre casas antigas da rua que moravam e conseguia escutar ao fundo os gritos da amiga. Venha! Venha!
“ There´s a nothin can harm you”, sua voz calma e compassada reforçou a de Armstrong e como em todos os momentos da sua vida, desde quando a porta se abriu com a imagem de Brigitta sorrindo, não sentiu medo. Ela estava por perto.
Apagou o cigarro. Deu o último gole no uísque e levantou-se. Não havia o que lamentar, não havia o que se arrepender.
Tudo foi dito.
Tudo foi vivido.
Tudo foi intensamente sentido.
Precisava prosseguir.
( Este texto faz parte de uma série de contos "Lola e Brigitta", sem sequência cronológica ou sentimental : http://impermeavela.blogspot.com/2009/08/lola-e-brigitta.html )
(Vídeo da música: SUMMERTIME, interpretação história e fenomenal de Ella Fitzgerald, Louis Armstrong e trompetes paralisantes. Ouvir a música e ler o texto ao mesmo tempo seria uma combinaçao "multimídia" perfeita)